Pela primeira vez no Brasil é realizada um seminário sobre a teoria queer, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Realizado nos dias 9 e 10 de setembro, conta com a presença Judith Butler, filósofa norte-americana e uma das precursoras da chamada deste pensamento que tenta, através de estudos da sexualidade, gênero e identidade de gênero, desconstruir normatividades. O interesse é tão grande que os ingressos foram esgotados (pode-se acompanhar as palestras e seminários ao vivo por este link aqui).
A Folha entrevistou por e-mail com o curador da I Seminário Queer: cultura e subversões das identidades, Richard Miskolci, 43, que é também sociólogo. Ele explicou um pouco da importância desta teoria, que ele prefere chamar de estudos, para certos entendimentos da realidade brasileira e criticou como ineficiente a defesa do Estado laico para confrontar o conservadorismo no país.
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Blogay – Como o campo de atuação da chamada teoria queer?
Richard Miskolci – Os estudos queer são um conjunto amplo de pesquisas e reflexões acadêmicas que mostram a centralidade do desejo e da sexualidade na vida social. Essas investigações mostram e analisam a forma como nossa cultura impõe padrões de comportamento como a heterosexualidade. Também questionam os aparatos estatais, jurídicos e culturais que nos obrigam a seguir ferreamente uma relação linear entre sexo biológico, gênero, desejo e práticas sexuais. Em outras palavras, os estudos queer explicitam o caráter compulsório da heterosexualidade e como nossa sociedade pune a transitividade de gênero.
Quais são as novas fronteiras de pesquisa desta teoria?
Depende de cada contexto, no Brasil há a necessidade de pesquisar sexualidade e gênero sempre levando em consideração raça/etnia/cor, pois nossa sociedade criou uma matriz própria de compreensão e vivência da sexualidade e do desejo indissociável de nossa experiência histórica marcada pela escravidão.
Vivemos em uma cultura racializada, ou seja, na qual as pessoas têm sua posição social e direitos de acordo com sua origem étnico-racial ou cor da pele. À subalternização sexual se une também a racial, de forma que muitxs são duplamente estigmatizadxs, tornando-xs mais vulneráveis à violência cotidiana em nosso país.
Recentemente, tivemos o Plano Municipal de Educação da cidade de São Paulo e a questão de gênero foi “demonizada” por grupos religiosos defensores da chamada “família tradicional” (formado por um homem e uma mulher hétero) como apontada como “ideologia de gênero”. Como a teoria queer pode ajudar a combater estes termos mistificadores (família tradicional, ideologia de gênero…)?
A polêmica mostra que a sexualidade e o gênero estão no centro da política brasileira contemporânea, o que deveríamos comemorar. Nunca antes na história desse país, esses temas chamaram tanto a atenção de todos e todas.
A primeira coisa a fazer é não confundir esses grupos autoritários e fundamentalistas com qualquer religião. Os que lutam contra o que denominam erroneamente de “ideologia de gênero” são apenas grupos politicamente organizados que se utilizam de seus referenciais religiosos para disseminar discursos de ódio e preconceito. Há uma grande quantidade de católicos, evangélicos e de outras religiões que não concordam com eles e que podem se tornar parceiros na construção de uma sociedade que reconheça a igualdade entre homens e mulheres, a cidadania de homossexuais e os direitos de transexuais e travestis à transitividade de gênero. Pessoas realmente religiosas não pregam ódio tampouco caçam direitos alheios. Considero míope a estratégia de certos grupos ativistas de combater os conservadores demandando apenas o cumprimento da laicidade do Estado. O Estado é laico, mas a sociedade é religiosa e o embate político é nela. Não se trata de opor religiosos a dissidentes sexuais e de gênero, antes de compreender que faz parte da tradição judaico-cristã o respeito e o acolhimento do próximo. É na construção de solidariedades e alianças com os verdadeiramente religiosos que se pode vencer esses grupos organizados que pregam o ódio e o preconceito pela distorção da religião.
Em segundo lugar, é importante mapear esses grupos reacionários para os conhecer e chamar ao debate dentro dos preceitos da democracia que não reconhece discurso de ódio como liberdade de expressão. Salvo engano, o termo ideologia de gênero vem da obra de um radical católico argentino desacreditado em seu próprio país, mas cujo livro foi traduzido e publicado no Brasil por uma editora evangélica. Curiosamente, isso não impediu que sua obra se tornasse um best-seller entre certas correntes conservadoras católicas. A perseguição aos estudos de gênero, uma séria vertente científica de pesquisa, como se fosse apenas uma ideologia se trata de uma campanha política advinda da aliança entre grupos conservadores e autoritários de várias religiões, mas que – reitero – não representam a elas como um todo.
Por fim, a supressão do termo gênero dos planos de educação não significa que eles não manterão sua premissa básica de educar para o respeito aos direitos humanos. O que esses grupos quiseram fazer – e conseguiram – foi “apagar” o termo que os assusta e que eles demonizam como se isso retirasse da realidade as questões do desejo, da sexualidade e do gênero. É sintomático que tenham lutado para impedir a menção, apagar o termo, pois vivem a negação do que existe e não pode ser mais ignorado. A negação é uma fase, mas o tempo não para e o gênero está no cerne da vida social. Estão tentando tapar o sol com a peneira e adiar o inevitável: a profunda transformação social em curso na sociedade brasileira em que as mulheres cada vez mais ganham igualdade e protagonismo social, a homossexualidade visibilidade e direitos e as dissidências de gênero florescem apontando para um futuro em que todxs possam ser reconhecidxs plenamente por nossa sociedade.