Com o (falso) discurso de defender uma certa e única formação familiar, a comissão especial que discute o Estatuto da Família, na Câmara dos Deputados, defendeu, em seu texto final, no dia 24 de setembro, que ela seria unicamente composta por um homem e uma mulher. Nada poderia ser mais antifamília. Se o termo diz também sobre indivíduos que se unem por pertencimento, acolhimento e interesses em comum, sejam sanguíneos, por afeição ou por ideias, esta concepção dos nobres deputados não poderia ser mais excludente e rancorosa. Até Jesus, que muitos se rogam, nessa comissão, falar em seu nome, estaria fora do conceito dessa família (explico mais adiante). A reação, desde então, tem sido grande por parte da sociedade civil. Uma delas acontece na quinta-feira, 1, na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH/USP), em São Paulo, com debates sobre o tema durante toda a tarde.
Associações de advogados, como a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, presidida por Maria Berenice Dias, soltaram nota de repúdio: “Referida definição, ao excluir do conceito de família as uniões homoafetivas, é discriminatório, excludente e homofóbico […], o indigitado Projeto de Lei é materialmente inconstitucional, por tentar, via lei ordinária, alterar a Constituição, ao propor um conceito de família trazendo restrições e limitações que não existem no texto constitucional e que já se encontra explicitado por quem tem competência para fazê-lo”.
O GADVS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero também respondeu a tal comissão especial: “este ‘Estatuto da Família’, no singular, é uma clara resposta (e provocação) ao ‘Estatuto das Famílias’, idealizado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, que visa proteger todos os agrupamentos familiares e não apenas um modelo único de família. […] a concepção de família conjugal propalada por seus defensores seria apenas o núcleo formado entre homem e mulher e sua prole. Ou seja, parecem defender que a capacidade procriativa seria uma espécie de ‘requisito indispensável’ à constituição da família merecedora da especial proteção a ela garantida pela Constituição (art. 226, caput). Contudo, o argumento não se sustenta à mais rasa das análises, pois casais heteroafetivos estéreis, que não possuem capacidade procriativa, não deixam de ser reconhecidos como famílias nem são impedidos de se casar (civilmente) ou ter sua união estável reconhecida pelo Estado. Fica claro, assim, que os defensores do referido ‘Estatuto da Família’ querem impor à sociedade uma determinada concepção religiosa de família, o que viola gravemente o princípio do Estado Laico”.
Apesar de claramente tentar atacar os homossexuais e seus direitos à cidadania, o tiro vai acabar atingindo outras formações familiares. O IBGE , em 2010, registrou no mínimo 57 formas de família que estariam fora de tal composição papai-mamãe:
1 – Família unipessoal (pessoa morando/vivendo sozinha)
2 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) sem filhos/as
3 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) sem filhos/as
4 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com filhos/as naturais
5 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com filhos/as naturais
6 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com enteados/as
7 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com enteados/as
8 – Homem com filhos/as naturais
9 – Mulher com filhos/as naturais
10 – Homem com enteados/as
11 – Mulher com enteados/as
12 – Homem com os pais
13 – Mulher com os pais
14 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com os pais de um dos cônjuges
15 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com os pais de um dos cônjuges
16 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com os pais dos dois cônjuges
17 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com os pais dos dois cônjuges
18 – Homem com os sogros
19 – Mulher com os sogros
20 – Homem com os avós
21 – Homem com os bisavós
22 – Mulher com os avós
23 – Mulher com os bisavós
24 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com os avós
25 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com os avós
26 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com os bisavós
27 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com os bisavós
28 – Homem com netos
29 – Homem com bisnetos
30 – Mulher com netos
31 – Mulher com bisnetos
32 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com netos
33 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com netos
34 – Homem com irmão ou irmã
35 – Mulher com irmão ou irmã
36 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com irmão/irmã de um dos cônjuges ou de ambos
37 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com irmão/irmã de um dos cônjuges ou de ambos
38 – Homem com tios
39 – Mulher com tios
40 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com tios
41 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com tios
42 – Homem com sobrinhos
43 – Mulher com sobrinhos
44 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com sobrinhos
45 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com sobrinhos
46 – Homem com primos
47 – Mulher com primos
48 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com primos
49 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com primos
50 – Homem com outros parentes
51 – Mulher com outros parentes
52 – Casal (cônjuges do mesmo sexo) com outros parentes
53 – Casal (cônjuges de sexos diferentes) com outros parentes
54 – Agregados (pessoas sem parentesco com a pessoa de referência nem com seu cônjuge, que não pagavam hospedagem nem alimentação)
55 – Pensionista (pessoas sem parentesco com a pessoa de referência nem com seu cônjuge, que pagavam hospedagem e/ou alimentação)
56 – Empregado/a doméstico/a residente no domicílio, em qualquer uma das configurações acima.
57 – Parente de empregado/a doméstico/a residente no domicílio, em qualquer uma das configurações acima.
Quer dizer, nenhuma destas formações a tal comissão contemplaria. E nem Jesus, pois ele tinha dois pais, segundo a Bíblia, que tantos desses deputados dizem seguir. Maria era casada com José que não era o pai biológico de Jesus, mas o criou como filho, fugiu para o Egito quando foi necessário, protegeu a criança como acreditamos ser o papel de um pai de verdade.
Muitos artistas se indignaram com tamanho retrocesso, entre eles, o ator Mateus Solano que escreveu nas redes sociais: “Acaba de ser aprovado na câmara o estatuto da família. Que, resumindo, torna ilegal as famílias homoafetivas. Isso é inconstitucional e não creio que vá adiante. Pois, todas as famílias são famílias. Todas as famílias são legais” (clique aqui para ver o vídeo).
Sim, todas as famílias são legais, seja a de um homem com uma mulher, seja as outras todas, se forem basicamente constituídas por amor, respeito, afinidade. Excluir qualquer uma delas é essencialmente ser antifamília, pois esquece-se e desrespeita-se o princípio básico que as tornaram uma família.