Quando lemos e estudamos Platão e, por extensão, Sócrates, o homoerotismo é uma questão muito presente, mas em geral, sublimada. Quando muito, comenta-se, quase em nota de rodapé, como eram as relações de amor e sexo entre os homens gregos, também conhecida como pederastia (a relação entre um jovem e um homem mais velho). O professor e filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. resolve tirar esta questão do armário da filosofia e dar luz a algo que realmente solta aos olhos. Ele, com certo ineditismo, anuncia que a filosofia não poderia surgir sem o amor homoerótico e a chamada pederastia educativa que era um ponto central na cultura dos gregos antigos. Esta é uma de muitas excelentes ideias de seu livro “Sócrates: Pensador e Educador – A Filosofia do Conhece-te a Ti Mesmo” (Cortez Editora), lançado este final de semana.
De leitura acessível, sem os malabarismos de muitos filósofos que pensam (às vezes) bem, mas escrevem mal, Ghiraldelli nos apresenta um Sócrates muito particular e não menos verdadeiro, fruto de seu próprio ato de filosofar.
Blogay entrevistou o filósofo.
Blogay – Em seu livro sobre Sócrates, entre inúmeras ideias contidas no livro, uma delas é que a filosofia ocidental foi fundada no homoerotismo e na pederastia, no exercício destas e que sem estas não haveria filosofia. Explique um pouco mais sobre isto
Paulo Ghiraldelli Jr.- A mulher é um ser da natureza, o homem é um ser da cultura. Essa visão grega não era à toa. De fato, em certo sentido, a gravidez prende o amor da mulher ao ciclo de vida, da reprodução, como faz com os animais. Só homem escapa disso. Atenas não era uma comunidade masculinista no sentido de uma sociedade de predominância do homem por conta de “dominação” deste sobre a mulher, mas pelas razões de que a liberdade era a liberdade política, e esta tinha a ver com a possibilidade de tornar a polis desvinculada dos ciclos da natureza, em especial o ciclo de geração e criação de filhos. Desse modo, beleza e amor, essencialmente culturais (afinal o que é hoje sentimento, eram deuses vinculados à cidade), eram próprios do mundo masculino. Ora, a filosofia é antes de tudo uma atividade que depende de eros, ou seja, de vida em confraria, e isso só poderia ser sinceramente exercido pelo amor completamente livre dos desvios e prisões da procriação. Nesse sentido, a filosofia é grega, masculina e homoerótica. Ela se fez a partir da pederastia.
O mundo grego, em especial Atenas, é um mundo do masculino. Por que na sua visão, Sócrates foi o mais masculino de todos os gregos?
Sócrates exerceu os valores do mundo masculino à medida que foi um dos mais preocupados com a polis grega, com as instituições de Atenas, tanto no sentido de preservá-las como de melhorá-las. Ele fez filosofia “como coisa de homens”, ou seja, como um impulso de eros, o deus da união, e essa união não poderia ser outra senão no interior de uma instituição que Sócrates procurou preservar e revolucionar, a instituição educacional da pederastia. Sócrates quis revolucioná-la à medida que queria que o jovem se apaixonasse pelo mais velho, pelo filósofo, e não como era a praxe, de só o mais velho se apaixonar pelo mais novo. Essa inversão da pederastia, desenvolvida por Sócrates, vinha no sentido de fazer da atividade erótica alguma coisa ampla, onde o mais velho tivesse background para se fazer interessante para o mais jovem. Desse modo, os valores do conhecimento, e não os dotes físicos, passariam a contar muito mais.
Sócrates era também um rebelde e você acredita que esta rebeldia está em sua formação educacional?
Ele não teve “professores”, só “professoras”. Seu aprendizado filosófico, revelado por ele mesmo, veio de Diotima (uma sábia), Aspásia (a estrangeira esposa de Péricles), Xantiga (sua esposa) e de sua mãe parteira. Não seria essa forma de apresentar Sócrates um modo de Platão mostrar um homem que realmente era diferente no contexto ateniense? Como numa sociedade tão masculina, Sócrates teria só aprendido com mulheres. Se lemos Platão com atenção, e ficamos conhecendo bem de suas formas de por as coisas, é bem plausível pensar que ele tenha feito Sócrates ser educado só por mulheres exatamente para mostrar como “a mosca de Atenas” era um “raio em céu azul”.
Por que a frase “só sei que nada sei” atribuída a Sócrates não faz sentido e não pertence a ele?
Sócrates sabia muita coisa. E não só coisa banal, que todo mundo sabe, mas ele se dizia mestre na “arte erótica”, ou seja, mestre na arte do namoro, que para ele era quase que sinônimo de conversação filosófica. De fato, rigorosamente falando, Sócrates não disse “só sei que nada sei”, assim, descontextualizadamente.
Por que o termo “conhece-te a ti mesmo” é usada muitas vezes hoje de forma equivocada? Qual o real sentido da expressão para Sócrates?
Era uma frase inscrita no Templo de Apolo. Sócrates a tomou como uma diretriz. Saber-se conhecedor de si era saber do seu lugar na comunidade grega, saber-se livre (e não escravo), saber-se ateniense (e não bárbaro), saber-se portador de uma alma que deveria ser cuidada, e não apenas de um corpo, que já era tão cuidado pelos gregos. O leigo em filosofia às vezes pensa o “conhece-te a ti mesmo” como o poderíamos usá-lo modernamente, como conhecer o próprio íntimo, em um sentido de um individualismo liberal, ou conhecer o campo do que seria inconsciente, etc.
Quem é Sócrates para você?
Sócrates é o filósofo par excellence. Ele é o modelo de filósofo que procuro seguir e, por isso, tenho formação universitária e a prezo muito, mas não tenho ilusões sobre fazer filosofia na universidade. Isso é quase impossível. A filosofia socrática exige a parresia (o falar completamente franco), e isso é difícil em nossa sociedade, imagine então em uma instituição com patrões, como a universidade.