Representação. Este é um dos primeiros passos que as minorias enfrentam e se impõem na sua luta por direitos. Elas não querem ser representadas pelo outro e sim produzirem suas próprias imagens, serem as donas dos meios de representação.
Foi assim com a chamada Blaxploitation em relação aos negros, na década de 70 (mesmo com todas as contradições, era um cinema de diretores e atores afro-americanos), e com os chamados filmes feministas na mesma década. No final dos anos 1980 e começo dos 90, surge um grupo de cineastas nos Estados Unidos e na Inglaterra que leva às telas questões de identidade de gênero e orientação sexual. A crítica de cinema B. Ruby Rich percebe este movimento e o batiza de New Queer Cinema.
Ele agora pode ser visto sob uma perspectiva histórica na mostra “New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política”, organizada por Denilson Lopes e Mateus Nagime. Os curadores também enxergam que um cinema de pensamento singular em relação aos gays, lésbicas e transgêneros também está surgindo no Brasil de hoje. Com os filmes estrangeiros do começo dos anos 90 e os brasileiros do começo desta década, eles formam um interessante painel que ficará em cartaz até o dia 10 de junho, no Caixa Belas Artes, em São Paulo.
Blogay conversou com Mateus Nagime sobre a mostra, o novo cinema LGBT que surge no país e o papel político New Queer Cinema.
Blogay – O que é o New Queer Cinema e sua importância histórica?
Mateus Nagime – Queer é uma palavra inglesa que significava “estranho, esquisito” e foi usada como forma pejorativa para gays durante muitas décadas. Na década de 1980, muitos téoricos e acadêmicos ligados a um movimento LGBT passaram a reapropriar o queer no sentido de assumir a peculiaridade que a palavra representava e como um orgulho disso. Nasceu, então, a Teoria Queer, muito influente até hoje.
Na década de 1980, existia também um debate muito grande nos EUA, especialmente sobre a representação de LGBTs no cinema hollywoodiano e mesmo no europeu que chegava lá. Se tinha a noção de que éramos sempre representados como criminosos, pessoas doentes ou ardilosas e precisava tanto combater essa produção quanto criar uma que mostrasse os gays como “pessoas normais”, “gente como a gente”, filmes para serem exibidos na TV para a família. Neste sentido, filmes como “Cruising”, de 1980, e “Instinto Selvagem”, de 1992, (ou seja, por muito tempo) tinham filmagens boicotadas e atrapalhadas por manifestações. Ao mesmo tempo, a Aids, conhecida por muito tempo como câncer gay, voltava a relacionar gays com doenças.
Assim, uma nova geração de cineastas queria romper com tudo isso. Não se tratava de mostrar visões higienizadas da homossexualidade ou acreditar que a questão gay já era algo do passado. Os filmes que circularam por muitos festivais (“Swoon”, “Garotos de Programa”, “Veneno” etc), conquistando muitos prêmios chamaram a atenção para o que ainda era uma questão. Era uma resposta à onda conservadora que assolava os EUA naquela época. Era uma tentativa de se afirmar a identidade dos LGBTs, dos queers, dos que não queriam sucumbir nem a uma heteronormatividade quanto a uma homonormatividade. Em “Swoon”, por exemplo, os protagonistas são um casal gay que mata uma criança – baseado em uma história real já filmada por Alfred Hitchcock e Richard Fleischer (“Festim Diabólico” e “Estranha Compulsão”), mas aqui Tom Kalin põe uma cama de casal no tribunal. Não importa muito o crime que eles cometeram, a verdadeira razão pela qual eles foram culpados e o crime foi midiatizado é o fato deles serem gays e esse julgamento ainda continuava nos anos 1990.
Você enxerga um New Queer na cinematografia nacional? Como ela acontece? Quais são os filmes e diretores?
Notamos nos últimos anos que existe uma onda similar ao New Queer Cinema no Brasil atualmente. Uma nova geração está surgindo em curtas e longas metragens e queremos pensar quais são as relações com o NQC. Mostrar que o NQC não foi um movimento histórico que tem relações com toda uma atmosfera social, política, cinematográfica que veio antes e que pode ter uma influência no que vem depois, assim como esse “novo cinema queer brasileiro”. Pensamos em diretores como Leonardo Mouramateus, Gustavo Vinagre, Chico Lacerda, Marcelo Caetano, Karim Ainouz, Hilton Lacerda, Daniel Ribeiro, Uirá dos Reis, Allan Ribeiro, coletivos como Surto & Deslumbramento. Além dos filmes que estão na mostra, temos outros exemplos: “Nova Dubai”, “Lição de Esqui”, “Esse Amor que nos Consome”, entre outros.
3) A mostra tem uma programação bem variada, o que você destacaria para quem gostaria de se inteirar no assunto e quais os “highlights” para quem já é entendido em Queer Cinema?
Montamos a programação tentando sempre por um curta e um longa para que visões diferentes e ao mesmo tempo complementares possam passar uma visão mais ampla do que foi o New Queer Cinema. Acreditamos que os filmes mais importantes e que talvez possam servir de porta de entrada para os que não conhecem o movimento sejam: “Swoon”, “Veneno”, “The Watermelon Woman”, “Garotos de Programa”, “Tongues Untied” e “No Skin off my Ass”, filmes muito fortes e intrigantes, além de todos os brasileiros. Para aqueles que já conhecem ou viram os filmes em casa, recomendamos alguns filmes que estão sendo exibidos em cópias 35mm: “Paciência Zero”, “Swoon”, “Garotos de Programa” e “Young Soul Rebels”. Além disso, lembramos que muitos destes filmes são raríssimos, especialmente os curtas-metragens e o longa-metragem Urinal.
Como o que o cinema queer contribuiu para uma política de tolerância e como este novo cinema queer no Brasil pode fazer este papel?
Essa é uma questão complicada, pois o NQC parte de uma política mais ampla – que incluia o Act UP e Queer Nation – por isso dizemos também que foi um movimento político. O movimento queer como um todo, aliás, não quer uma tolerância no sentido de “nós, os homens héteros brancos estamos agora tolerantes e vamos incluir vocês na pauta de discussões e na sociedade em geral”. Tanto que Karim Ainouz comenta em seu depoimento para o catálogo da mostra, que o movimento queer foi logo “corrompido” (minha palavra) para o indie, para o mercado. Acredito que o movimento queer e especificamente o NQC não busca uma tolerância no sentido de esquecer as diferenças e partir para uma sociedade em que cada um está no seu lugar, mas para mostrar que os gays, as lésbicas, os queers têm uma visão do mundo e que diz respeito à sociedade como um todo – e podemos colaborar para todos os movimentos que promovem uma verdadeira igualdade na qual a questão de tolerância não é necessária, nem bem vista, pois indica que o que é tolerado é algo pior, algo que precisa ser tolerado. E é algo que o novo cinema queer no Brasil faz a partir de uma perspectiva própria – dos vários crimes de homofobia que existem todo dia, dos LGBTs mortos, dos preconceitos que perpassam outras questões – classe social, raça, a dicotomia bicha/bofe femme/butch ainda vigente de modo forte no mundo gay masculino especialmente – e uma questão mais ampla que atende a todas as pessoas, a de que não devemos deixar outros definirem o que somos ou deveríamos ser. Cada um pode e deve produzir sua própria identidade.