Tem transexual que se afirma como uma mulher, tem outra que diz que nunca será como uma mulher, tem transexual que tirou as mamas, mas se sente homem mesmo não tendo o orgão sexual masculino, tem travesti que gosta de seu próprio pênis, tem homem heterossexual que gosta de se vestir com roupas femininas, tem gay que ama usar saia, tem gente que não está interessada nem em ser uma figura masculina nem feminina, e tem muito mais gente por aí que vive sua sexualidade, sua identidade de gênero ou seu jeito de expressar sua individualidade através das roupas (a moda aqui como forma de libertação) de maneira livre. Estes são alguns dos entrevistados do caleidoscópico “De Gravata e Unha Vermelha”, de Miriam Chnaiderman. O documentário, que estreia nesta quinta-feira, 7, nos cinemas de São Paulo, é um filme que, em um primeiro momento parece ter vindo mais para confundir do que para explicar, mas é no seu leque de inúmeros desejos e individualidades que ele explica tudo: seja você mesmo, para além dos códigos hoje estabelecidos do que é ser homem ou mulher, hétero, bi ou homossexual.
Miriam, que também é uma importante psicanalista, junto com o estilista Dudu Bertholini, que faz o papel de entrevistador e um dos entrevistados (de forma brilhante!), cria um ambiente que a verdade não está lá fora e sim, dentro de cada um. O filme narra cada entrevistado com o respeito e a dignidade de sua verdade ao narrar como se sente e também pelo que passou, por enfrentar preconceitos para realmente ser o que queria ser. “De gravata…” é humanismo na veia e também um filme mais que necessário em tempos de Bolsonaros, Felicianos e Cunhas.
O Blogay conversou por e-mail com a diretora
Blogay – Você me contou que a ideia inicial do filme surgiu em uma declaração de Laerte. O que foi que ela disse que te estimulou?
Miriam Chnaiderman – Quando Laerte apareceu como a Laerte, já aos 60 anos de idade e toda uma importante carreira como cartunista, eu fiquei encantada. Ela questionava os padrões da nossa cultura que aprisionam as pessoas no binarismo de gênero. Ela questionava isso que aprisiona já as crianças: menino tem que brincar de carrinho e futebol e menina tem que brincar de boneca. Ao se vestir como mulher, Laerte veio a público escancarando a força desruptora do desejo.
Como você chegou ao Dudu Bertholini, que é entrevistador e entrevistado de seu filme, e como foi o trabalho com ele?
Eu via o Dudu, com seus brincos e cafetãs, na padaria que frequento. É uma padaria de donos portugueses, super conservadores, e que gostam muito do Dudu. A tranquilidade em ser o que é faz com que todo mundo respeite e goste do Dudu. Quando eu ganhei o edital do MinC e consegui o dinheiro pra fazer o filme, eu fui conversar com o Dudu. Ele se encantou com o projeto, a partir daí fizemos uma linda parceria. Fizemos juntos a curadoria – ele me levou a alguns personagens e eu o apresentei a outros. O filme é muito marcado pelo Dudu. Nos meus outros documentários era impensável cenografar uma entrevista. Nossa primeira filmagem foi a entrevista com o Dudu. Eu levei um susto porque pra ele não existe filmagem sem cenografia. E tem tudo a ver pois trabalhamos com corpos cenografados e cenografias do desejo. Mesmo quando não cenografados parece que a cenografia desejante recorta os encontros que aconteceram.
Ele, o Dudu, me parece não só o narrador do filme como a corporificação das ideias do filme que é a total liberdade de gênero e da individualidade, estou equivocado nesta análise?
Você está certo. E, como eu disse acima, ele realmente corporificou as ideias do filme. Quando ao final do filme ele se define como “gender fucker”, ele estilhaça o binarismo de gênero.
Você disse na pré-estreia que quer confundir as cabeças. Como o filme pretende isto?
Eu queria criar uma vertigem, algo que fizesse o espectador sair do cinema se questionando sobre esses compartimentos que a cultura impõe à sexualidade. Por isso tantos personagens e por isso também a edição clipada. Eu queria também que o filme resgatasse o gesto heroico de bancar o próprio desejo e a alegria de poder viver a sexualidade do jeito que for. Não queria que a sexualidade que rompe com o aceito socialmente estivesse apenas na marginalidade. Quando mostro, no Carnaval, os homens se vestindo de mulher, é pra mostrar que as fantasias de outros sexos estão em todos nós.
Qual a novidade deste filme em relação aos seus anteriores?
É um filme leve, embora eu não descuide do sofrimento e contradições inerentes à essas escolhas todas. É um filme que, por causa da presença de alguns personagens – Dudu Bertholini , Walério Araujo, Johnny Luxo – acaba ligando moda e gênero. Acho que é meu primeiro filme onde todo um lado lúdico fica ressaltado. É isso é bom. Aprendi muito de linguagem do documentário na edição desse filme.
Por que o nome “De Gravata e Unha Vermelha”?
O título tem uma brincadeira com os emblemas que caracterizam o feminino e o masculino. Juntar os dois faz desembocar no “queer”. Juntar os dois emblemas já no título parece deixar clara a proposta do filme de quebra dos emblemas aprisionadores em nosso mundo.
Assista o trailer do filme: