Muita gente, paulistano ou mesmo de fora da cidade, espantou-se com o volume (nada morto) de blocos de rua que apareceram este ano antes, durante e depois do Carnaval em São Paulo. Mais alguns deles ainda se apresentam neste final de semana (ver programação aqui e preencha o campo com as datas de sábado e domingo – 28/02/2015 e 01/03/2015). Será que o túmulo do samba ressuscitou para a folia de Momo? O que aconteceu para que a cidade vibrasse no ritmo da maior festa do país?
A resposta é mais complexa e envolve a vida noturna, a cena underground da cidade, os LGBTs e a nova concepção de cidadania que São Paulo está moldando e poderá influenciar o país (sem bairrismos, mas é aqui que realmente o capitalismo age de forma mais avançada – para o bem e para o mal – e existe uma grande parcela de classe média que a cada dia exige mais seus direitos).
Nos anos 80, São Paulo era uma cidade “indoor”. Alguns diziam que a razão era pelo frio que hoje quase inexiste, mas também por um certo gosto pelo privado. As boates – na época, danceterias – viviam cheias e as pessoas abriam suas casas e apartamentos para festas. Era comum, em um final de semana, ter mais de duas festas na casa de algum conhecido (ou não) para ir. Claro que existiam espaços públicos de convivência (fora os parques). A rua 13 de Maio, na Bela Vista e a Marquês de Itú, no Centro, clássico point gay, impediam o tráfego de carros, principalmente na sexta e no sábado, mas eram exceções que confirmavam a regra em uma cidade das dimensões de São Paulo.
Nos 1990, a movimentação da 13 transferiu-se para a Vila Madalena e a Marquês viveu um período de decadência. Entretanto, as agitações continuavam a acontecer nos clubes e nos dilaus (salve Luma Assis! Este é o outro nome – bem mais legal – para as festas pós-clube que costumavam acabar na tarde do dia seguinte, os chamado chill outs).
Nos anos 2000, a rua Augusta volta novamente a ser o epicentro da noite. Mas ainda com muito mais gente dentro de seus carros (espaço privado) do que tomando as ruas. Surge neste período aquele que foi chamado de Triângulo dos Shortinhos (o apelido era porque se você entrasse naquela área, você não conseguia mais sair). Era formado em um dos vértices por dois botecões sujos com bilhar ao fundo (hoje fechados pela Prefeitura), em outra ponta estava o Ecleticu´s – musicado por Tatá Aeroplano e frequentado por travestis, gays, artistas, jornalistas, boêmios – e, fechando o ângulo, o Bar do Netão, que o Blogay acompanhou desde sua aparição.
A qualidade desse ambiente era que não se pagava para entrar em nenhum desses lugares (algo até então bem raro em São Paulo), tinha boa música – no Netão, pista de dança, e no Ecleticu’s improvisava-se um dancefloor – e as pessoas tomavam as calçadas. Outros lugares assim também surgiram na época ou um pouco antes, mas o Triângulo teve anos de vida, sedimentou a ideia de ocupar os espaços públicos, da calçada ser parte da festa. De lá, saíram coletivos como o Voodoo Hop, por exemplo, que depois se alojou por um período em um prédio ocupado, a Trackers.
Tudo é muito simbólico do que acontece hoje. O Netão, que terminou com uma gigantesca festa de rua no domingo de Carnaval (coincidência é bobagem), e o Ecleticu´s foram demolidos pela especulação imobiliária, a mesma que agora tenta construir duas torres no Parque Augusta. E, cada vez mais, coletivos fazem festas em espaços invadidos, principalmente pelos movimentos sem-teto.
Neste interim, a praça Roosevelt que foi revitalizada espiritualmente pelos grupos de teatro, ganha uma festa de rua em uma escadaria lateral chamada de Vaca Galactose. Um braço do evento, expulsa pela polícia porque fazia barulho e incomodava os vizinhos, transferiu-se para uma entrada do Minhocão e o lugar ficou conhecido como Buraco da Minhoca.
Esta vontade nova para São Paulo de ocupar os espaços públicos pode ser sentida nos debates para a construção de dois parques: o Augusta e o Minhocão. E, nos últimos anos, tornou-se algo orgânico: coletivos e jovens militantes cada vez mais reivindicam o espaço que é de todos. Assim, karaokês em praças, festas atrás da Biblioteca Municipal assim como no jardim em frente ao Teatro Municipal ganham força e impõem uma importância que, independente da linha ideológica que estiver a frente da prefeitura, não tem mais volta.
O prefeito Fernando Haddad (PT-SP) percebeu esta vontade pelos espaços públicos dos cidadãos de São Paulo – em parte (o caso Parque Augusta e o Autorama –área de encontro gay no estacionamento do Ibirapuera que foi fechado por ele – ainda se mostram como um calcanhar de Aquiles gritante desta administração) . E, com o crescimento dos blocos e da noção de cidadania na cidade, a prefeitura inteligentemente decretou que eram proibidos abadás e áreas vips. Esta é uma diferença aparentemente gritante em relação a muitos outros Carnavais famosos no Brasil, acostumados à Casa Grande e Senzala como Gil declarou em outras palavras mais doces, mas com o mesmo significado. A outra é que o reinado da cidadania foi coroado neste Carnaval (mesmo no caso do saudável debate entre os foliões e os moradores da Vila Madalena e o limite do respeito e do que é vandalismo), já que a questão de tomar os espaços públicos é essencial para o conceito de cidadão. Enfim, a cidadania nunca esteve tão repleta de alegria, confete e purpurina.