‘Gazelle  – The Love Issue’ exibe o quão profunda é a superficialidade

Por Vitor Angelo

Com première mundial marcada para esta sexta-feira, 14, no CineSesc, às 19h, dentro da programação do 22º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em São Paulo, “Gazelle –  The Love Issue” leva a máxima de um dos maiores artistas de todos os tempos, Andy Warhol,  ao pé (ou seria salto 15?) da letra: desvendar a profundidade da contemporaneidade através do que é considerado menor, leviano, popular, superficial, isto é, mergulhar na essência da cultura pop. E, para isso, a questão da imagem é essencial e, no documentário de 93 minutos, dirigido por Cesar Terranova, 33, a persona de Gazelle é o corpo-imagem do filme que desvenda a alma de Paulo. O filme será reapresentado no domingo, 16, no Espaço Itaú, às 22h.

Mas quem é Gazelle? Paulo, 45, o mentor e criador, descreveu a criatura ao Blogay: “Gazelle, na minha vida, representa uma heroína pessoal, cujos poderes invocam emoções e reações nas pessoas partindo do meu ponto de vista sobre a beleza e visões do mundo. Paulo e Gazelle compartilham a mesma jornada, se complementam. Eu me sinto Paulo em todos os momentos da vida, desde muito pequeno, eu entendi quem eu era como pessoa e qual o meu papel na sociedade. Gazelle apenas leva certos sentimentos do Paulo para o plano ilimitado da fantasia com a ajuda de ferramentas como a moda e o bom humor. Gazelle existe, para além da montação, na cabeça de algumas pessoas que nem me chamam mais de Paulo. Porém, para mim, Gazelle só existe com a minha permissão.”

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Gazelle é uma figura conhecida da cena noturna de Nova York, Londres e São Paulo. Ele (Paulo)/ela (Gazelle) tinha um fotolog (nos idos tempos que essa rede social era “hype”) e postava fotos com seus looks pra lá de absurdo. Além disso, tinha também uma revista, a “Gazelland”, que seu último número, a “Love Issue”, ele acabou não imprimindo, até o começo das filmagens do documentário.  O verbo ter, conjugado no pretérito imperfeito, é fundamental para a primeira parte do filme. Paulo Gazelle tinha um namorado que morreu. Tinha um tesão por uma revista que acabou antes da última publicação. Tinha uma casa de família em Teresina, Piauí, sua terra natal, que não existe mais. Tinha saúde.

(Divulgação/Mark Anthony)
(Divulgação/Mark Anthony)

Aliás, a cena em que Paulo visita o médico, logo no começo do filme, e descobre que, mesmo sendo HIV positivo e até então com cargas virais boas, ele precisará tomar medicamentos, pois sua saúde debilitou-se, é impactante. Primeiro porque rompe com a questão de uma primeira glamourização da personagem (não existe glamour na doença, apesar de todo “trendismo” que gays americanos e europeus tentaram fazer no caso da Aids) como também mostra o fio da navalha que o documentário andará para captar a essência de Paulo Gazelle. Como não invadir de forma brutal a privacidade do outro é um ponto delicado no filme e Cesar explica ao Blogay a técnica que ele usou para que o registro não ficasse extremamente invasivo: “Meu desejo maior era traçar um retrato verdadeiro e pessoal do Paulo e da Gazelle, que não perpetuasse equívocos ou preconceitos em relação a temas como: noite, vida gay e também o HIV, mostrando que tudo isso geralmente é apenas uma pequena parte do trabalho árduo que é ser humano e lutar contra a corrente que o destino reserva para cada um nós. O curso de Documentary  Filmmaking da New York Film Academy [que Cesar frequentou] é muito bom. Muitas aulas são voltadas ao processo de registro da vida pessoal alheia, levantando questões importantes e ensinando o processo ‘fly on the wall’ [em português, mosca na parede, e é um estilo de documentário que a equipe tenta ficar o mais invisível ao registrar os sujeitos do filme] interferindo o mínimo possível na narrativa da personagem e amplificando na edição a história principal.”

A persona Gazelle, que nunca repete um look, que está em inúmeros eventos sociais, que frequenta a noite com desenvoltura, se apresenta de forma categórica, mas a cada camada de roupa ou make, desvenda-se o eu profundo de Paulo, um ser apaixonado, sensível, frágil. O vestuário e sua troca constante desnuda um ser sólido e constante. Neste momento, o verbo ter muda sua forma verbal e vai para o presente do indicativo. Paulo tem um novo namorado. Tem a última edição de sua revista impressa. Tem saúde.

É muito interessante como ele tem domínio da imagem, ele próprio adora fotografar e vive rodeado com artistas, ilustradores, fotógrafos. Ele tem a imagem a seu favor. Ele tem Gazelle a seu favor. Uma morte do cisne pronta para ser ressuscitada. E neste momento o verbo ter sai de cena e surge o verbo ser com a mesma intensidade de um novo look sendo criado.

(Divulgação/Cesar Terranova)
(Divulgação/Cesar Terranova)

E para quem acredita que a tal montação é algo fútil, Paulo revela: “É uma linguagem muito pessoal, que me deixa em sintonia com a existência entre o belo e o grotesco… Onde a imperfeição torna-se perfeita”. Bem que Andy Warhol já tinha nos avisado que a tal superficialidade (ou aquilo que julgamos como superficial) é muito mais complexa do que visualizamos …