O primeiro romance de Marcelino Freire, “Nossos Ossos” (2013) é um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura 2014, que acontece nesta segunda-feira, 10, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, a partir das 20h. O livro conta a estória do dramaturgo premiado Heleno que recebe a notícia de um michê que, ele, às vezes, pagava, foi brutalmente assassinado. Sua via-crúcis é levar o corpo do “boy” até o interior do Nordeste e entregá-lo à família do rapaz.
Narrado com muita fluidez na primeira pessoa, a língua do eu e de toda a subjetividade deste eu particular, a maestria do romance está na arte do deslocamento. Seja o deslocamento que este eu, às vezes, dá em sua narrativa, ao incorporar discursos na terceira pessoa dentro de sua própria fala. Seja o deslocamento geográfico do Nordeste para São Paulo e de novo para o Nordeste. Seja o deslocamento da figura amorosa, ele vem para a capital paulista para encontrar seu grande amor, Carlos, que partiu antes dele para São Paulo e depois o despreza fazendo Heleno substituí-lo, nem que fosse apenas no campo das imagens, pela figura do michê que depois seria assassinado.
Enfim, a operação feita pelo deslocamento é a antítese da polarização onde existe o eu e o outro como inferno e oposto. Quando o eu se desloca para o outro, como no livro que é dividido em “Parte um” e “Parte outro”, existe o esforço de se conhecer a partir da relação de aproximação com o outro e não por oposição. E este exercício é levado na sua experiência mais radical, quando o eu e o outro se encontram na morte. Exatamente por isso, não é meu, não é seu, é nosso.
Curto e ágil, “Nossos Ossos” não deixa de ser denso por causa dos primeiros adjetivos por mim descritos neste parágrafo. Através do corpo, da fisicalidade deste, chegamos às carcaças da alma. Assim como o enigma “rosebud” do Cidadão Kane, a chave do corpo (e também da alma) de Heleno está em algum lugar no passado, no sertão, quando criança representava um guerreiro sertanejo. Aliás, em alguns campos da ciência e da psicanálise acredita-se que é na infância que o eu e a individualidade são formados.
Talvez o que de mais belo parece nos sussurrar “Nossos Ossos” é que nosso eu é feito de outros. E, em tempos de polarização e radicalismo, onde o outro como alteridade, como diferente, é sempre inimigo, é uma valiosa e poética lição.