Enquanto o Brasil entrava na fase mais sombria da Ditadura Militar, o AI-5, nos Estados Unidos, gays, lésbicas e transgêneros enfrentam a polícia nas ruas de Nova York por respeito e inclusão cidadã. Dentro desta dicotomia entre a luta pela liberdade e direitos dos LGBTs e vivendo o estado de exceção brasileiro, uma pessoa é peça chave para a entendermos a relação entre os militares no poder e os homossexuais que começavam a se organizar no país: João Silvério Trevisan.
Por suas atuações em diversas áreas – ele é escritor, dramaturgo, cineasta, jornalista, ativista -: foi censurado por um longa-metragem, “Orgia ou o homem que deu cria”, considerado subversivo; fundou o primeiro jornal voltado para questões homossexuais, Lampião da Esquina; e esteve na formação do grupo Somos, de ativismo LGBT. Isto é, Trevisan enfrentou a censura no campo artístico (com seu filme), a censura da imprensa (com Lampião), a censura cultural (com o boicote das distribuidoras que não desejavam espalhar um “jornal de viado”) e a censura partidário-ideológica (o grupo Somos fez um enorme esforço contra a cooptação partidária de grupos homossexuais).
O autor de “Devassos no Paraíso”, livro do qual este blog tem como referência máxima, é acima de tudo libertário – uma afronta ao Regime Militar na época e ao policiamento de certos militantes hoje – e sua voz continua sempre sendo de extrema importância e necessária de ser sempre ouvida.
Com a palavra, Trevisan:
Blogay – Qual era a relação da ditadura com os LGBTs?
João Silvério Trevisan – É próprio das ditaduras cercearem as liberdades, e, no Brasil, não foi diferente, com perseguições políticas ferozes, cassação de políticos, prisões e torturas aos opositores. Em nível institucional, desconheço alguma perseguição aberta ou em massa contra homossexuais, a partir de determinações do regime. Não houve inovações em leis e códigos penais visando moralizar os costumes. O mais parecido com isso foi a Lei de Imprensa, de 1967, que coibia noticiário considerado subversivo ou contrário ao regime, incluindo-se aquilo que fosse considerado imoral. Essa repressão foi reforçada ainda mais pelo AI-5, de 1969. Em nível de governo, havia a Censura Federal, que foi um órgão extremamente atuante e autoritário, em termos de liberdade de expressão. Além da forte vigilância sobre os jornais, que precisavam mandar antecipadamente sua pauta aos censores, havia muitos livros, filmes e espetáculos proibidos ou censurados. Obviamente, tudo aquilo que fizesse menção à homossexualidade sofria censura ou veto – o que era óbvio numa ditadura que provocou uma maré conservadora em todos os extratos da sociedade. Não apenas o exército reprimia severamente manifestações contrárias ao regime, agentes dispersos, respaldados pelo regime, tinham espaço para reprimir tudo aquilo que era considerado subversivo ou “atentatório à moral e aos bons costumes”. As polícias também serviam como olho vigilante e braço atuante. Foi assim com meu filme “Orgia ou o homem que deu cria”, de 1970, impedido de ser exibido por conter obscenidades em “quase sua totalidade”. As obscenidades, no caso, tinham a ver com a personagem de uma travesti e a representação de homens transando, mas também com palavrões e até mesmo com a sugestão de índios devorando um bebê. Do lado da imprensa, o caso mais emblemático foi o do jornal “Lampião da Esquina”, voltado para a comunidade homossexual, do qual eu era um dos editores. Sofremos um inquérito policial e fomos interrogados e fotografados criminalmente. No processo da promotoria, além de anormais e outras classificações previsíveis fomos chamados de “pessoas que sofriam de graves problemas comportamentais”. Em relação à polícia, aqui em São Paulo, ficou célebre a perseguição moralizante do delegado Wilson Richetti contra bichas, travestis e putas no centro de São Paulo, o que acabou promovendo a primeira passeata de homossexuais, em 1980, em protesto contra as perseguições, maus tratos e prisões arbitrárias.
Como foi para você ter uma vivência homossexual em plena ditadura?
Foi bastante doloroso, pois coincidiu justamente com o florescimento da minha homossexualidade, a partir do momento em que a assumi. A vida guei em São Paulo existia em muito menor grau e a gente desfrutava do que era possível, inventando lugares para paquerar, fossem cinemas, praças, banheiros públicos ou algumas saunas menos vigiadas – sempre correndo risco de repressão. Também frequentávamos as poucas boates exclusivas para o público guei. Entre 1971 e 1973, morei numa pequena comunidade de homossexuais, onde fazíamos reuniões frequentes para discutir nossos problemas pessoais, o que nos proporcionava imenso apoio uns aos outros. Meu grande refúgio era a boate Medieval, muito próxima da casa onde morávamos. Quando eu entrava lá, sentia que era o meu espaço, e adorava dançar quase sem parar. Depois que voltei para o Brasil do meu exílio de três anos, entendi que era necessário criar espaços e situações em que homossexuais pudessem ir além das paqueras, para discutir e se organizar politicamente. Daí, tive a ideia de fundar o grupo Somos, que depois se multiplicou pelo Brasil afora. O começo foi muito difícil, mas conseguimos articular um grupo razoável, que trabalhava em várias frentes, divulgando os direitos homossexuais em faculdades, protestando contra a repressão e fazendo contatos no exterior. Foi um horizonte amplo que se abriu, juntamente com o jornal “Lampião da Esquina”, que tinha distribuição nacional, montada a duras penas, já que as distribuidoras tradicionais se recusavam a trabalhar com “jornal de viado”. Mesmo os donos de banca eram preconceituosos, e tínhamos que convencer a cada um. Na somatória de todas essas atividades foi possível ver um horizonte mais favorável no futuro. A energia que a gente tinha era indescritível, movidos pela consciência crescente de estar abrindo caminhos para a conquista de nossos direitos.
Qual a grande lição histórica da experiência do Lampião da Esquina e do grupo Somos que podemos tomar para nós?
“Lampião da Esquina” foi uma expressão libertária de um grupo social que começou a se organizar para se defender dos preconceitos seculares e conquistar seus direitos. Hoje, a comunidade LGBT é assombrada pela ilusão de que chegamos ao paraíso – bastando acessar a internet e encontrar o próximo parceiro de cama. Na contramão desse conformismo, eu me reporto a um documentário que fiz clandestinamente, em 1969, no qual inseri em várias línguas esta frase que me parece um parâmetro de vitalidade política: “É preciso atrever-se a pensar, falar, agir, ser temerário e não intimidar-se com os grandes nomes nem as autoridades.” Dentro do grupo Somos-SP, aliás, nós reivindicávamos a necessidade de cada homossexual ser dono da sua própria voz, inclusive contra lideranças manipuladoras ou doutores donos do saber. Tínhamos convicção de que ninguém é dono do saber e estávamos cansados de ter a voz da ciência, das igrejas e dos legisladores falando por nós – em geral, para nos condenar. Já então, lutávamos também contra a cooptação de qualquer partido político, que poderia sim ser nosso aliado, mas nunca nosso mentor, como tem acontecido com as cooptações de lideranças homossexuais na atualidade. As manifestações de junho de 2013 vieram mostrar que nós, em 1978, tínhamos razão ao reivindicar a autonomia dos movimentos sociais e a ação direta em nosso questionamento político, utilizando nossa própria voz e não a voz de possíveis “companheiros”, sempre quando interessa a eles, é claro.