“Queridinho, se você não conhece nenhuma banda que toca aqui, mas não quer fazer feio, diga que só escuta Velvet Underground”, aconselhava sempre uma amiga para desavisados que chegavam no Madame Satã, famosa casa underground dos anos 1980, em São Paulo. Neste mesmo local, um futuro crítico de música também adorava citar o ex-vocalista do Velvet diante a cena pansexual da casa noturna. “Lou Reed é muito louco, ele transa com travesti”, gostava de repetir entre a admiração e o sarcasmo machista. E tinha Claudia Wonder, a transexual que cantava músicas do roqueiro em versões em português, no palco do clube onde todos iam sempre vestidos de preto como já prenunciava a banda apadrinhada por Andy Warhol lá na década de 60.
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Um pouco antes, quando eu ainda era pré-adolescente, tocava de vez em quando “Walk On the Wild Side” (um dos maiores sucessos de Lou Reed) na rádio e eu achava fofo quando entravam as “colored girls” em um coro fazendo “doo do doo do doo do do doo…” Nem imaginava a potência narrativa das histórias dos vários personagens citados na música de Reed e que frequentavam, assim como o músico, a lendária Factory, o estúdio de arte babadeiro de Andy Warhol. As travestis Holly Woodlawn, Candy Darling e Jackie Curtis assim como Joe Dallesandro e Sugar Plum Fairy são atores dos filmes de Warhol e também personagens do lado selvagem de Lou Reed. Tudo isso, fiquei sabendo no Satã, anos antes do músico lançar “New York”. Foi neste clube, que abriu as portas para tantas informações, que Lou Reed era uma grande referência, já sabia-se lá que tudo o que vivíamos: o punk, o pós punk, a urbanidade, a diversidade sexual era também por causa dele ter indicado caminhos. Aliás, da mesma forma que a Factory foi importante para o orgulho gay (mesmo de forma indireta), Lou Reed foi vital para a visibilidade trans. Ele abriu portas.
E foi neste “sunday morning”, domingo de manhã, 27, que, no Facebook do músico, apareceu uma foto sua com a legenda “the door” (a porta). De forma poética e sintética, a mensagem anunciava a morte de Lou Reed. Aquele que mostrou outros caminhos, na música e no comportamento, abriu portas enquanto muito as fechavam.
No meio machista do rock dos anos 1970, ele não teve medo de namorar uma travesti, a bela Rachel, como narra “Mate-me, Por Favor”, de Larry “Legs” McNeil e Gilliam McCain. Diz, no livro, que ela chegou para as outras colegas e foi bem direta: “Eu não quero ninguém perto dele. Eu não quero ninguém conversando com ele. Ele é meu”.
Em “Transformer” (1973) e em “Rock’n Roll Animal” (1974), ele está maquiado ao estilo glam rock da época, mas na contracapa do primeiro álbum, uma travesti e um drag king dão o tom do que Reed queria dizer com “transformer”.
Também foi surpresa para muitos ele namorar a andrógina compositora Laurie Anderson. Mas é mais uma prova de como Lou é livre e suas portas estão sempre abertas. Viveram juntos por mais de 13 anos e, em 2008, se casaram secretamente.
Uma vez, andando pelo Lincoln Center, em Nova York, minha amiga, a artista visual Marie Ange Bordas, me apontou para um casal ao lado. Era Laurie e Lou, era verão, mas eles estavam de preto. “Quem ama o sol?” Ficamos seguindo eles por um tempo, os dois de mãos dadas como num “perfect day”, até sumirem pois nada é perfeito para sempre. Ficamos um tempo encantados como se o show particular de amorosidade e carinho em meio a tanta roupa preta tivesse sido feito para nós, só para nós. De certa forma, eles nos diziam ali naquele momento que não há regras para nada, para o amor, para o verão, para a vida, como dois verdadeiros transgressores. Eles abriram novas portas para nós, porque como diz a letra da música de Reed, “After Hours”: “se você fechar a porta, a noite poderá durar para sempre”.
R.I.P., senhor Transformer! R.I.P., senhor Transgressor! Afinal estas duas palavras para Lou Reed são sinônimos.