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Visibilidade trans: “Somos forçados à invisibilidade, porque denunciamos que há outras sexualidades”, diz o psicólogo João Nery (parte 4)

Por Vitor Angelo

Pai orgulhoso, psicólogo, autor de livros como “Viagem Solitária”, casado e de certa forma realizado. Esta é uma descrição justa para João W. Nery.  Mas para isto, ele teve que se impor contra a intolerância e o preconceito ao não se sentir confortável no corpo de mulher que nasceu.

Capa do livro “Viagem Solitária”, de João W. Nery (Reprodução)

Nery é o primeiro transexual ou transhomem brasileiro, isto é, aquele que teve a coragem, as possibilidades e o entendimento do que estava se passando consigo. Esta experiência, ele não só compartilha com outros através de seus livros como é um ativista que luta, entre outras coisas, pelo fim da despatologização dxs transexuais, isto é, a transexualidade não mais como doença.

Em entrevista para o Blogay, Nery fala sobre as questões dos lugares públicos binários, as políticas para transexuais e para transhomens como ele, além de como educou uma criança a ser tolerante, a deixou brincar com bonecas para que pudesse expressar sua afetividade e como isto não afetou a orientação sexual de seu filho que é hétero.

Blogay – Como você lida com a questão do banheiro, o vestiário ou dos espaços binários públicos?

João W. Nery – Trans é a pessoa que não se identifica com seus genitais biológicos (e suas atribuições socioculturais) podendo, às vezes, se submeter à cirurgia de readequação sexual, procurando chegar ao sexo oposto, para se sentir mais adequado ao gênero psicológico, construindo uma expressão de gênero em consonância com o seu bem estar biopsicossocial e político, ou seja, em direção ao que se sente mais apropriado, a fim de chegar ao seu bem estar psicológico. Quanto ao uso do banheiro, eu, que me identifico com o gênero masculino, geralmente vou naquele destinado aos homens, mas se este estiver fechado, entro no feminino. Acho um absurdo os banheiros não serem unissex. Também sou contra a criação de um terceiro banheiro. Acho essa medida segregacionista e discriminatória. Há, inclusive, leis municipais que proíbem banheiros unissex.

Você já teve problemas ou sofreu preconceito em algum destes espaços?

Sim, várias vezes, sobretudo antes da cirurgia [João definitivamente deixou Joana para trás em 1977, em uma cirurgia clandestina na época] quando aparentava uma figura andrógina e, era discriminado ao frequentar banheiros – tanto femininos quanto masculinos.

Quais são as demandas dos chamados transhomens (uma tradução de female-to-male, isto é mulheres que se sentem inadequados em seu corpo e se sentem homem), as questões são as mesmas que as transmulheres (nome social, cirurgia de redesignação sexual – popularmente conhecida como cirurgia de mudança de sexo)) ou há outras? Quais?

Os transhomens não são considerados um grupo de risco e por isso não tem apoio financeiro como tem as ONGs que trabalham com DST/AIDS e grupos de transmulheres e travestis. São também mais invisíveis, mesmo dentro do movimento LGBT. Basicamente, as demandas são as mesmas, com variações insignificantes. Citarei algumas das quais você não falou:

Mudança do modelo psiquiatrizante às pessoas transexuais e travestis, que patologiza as identidades trans, submetendo–@s a processos cientificamente questionáveis e moralmente reprováveis de diagnóstico de suas identidades para poder se operar; multiplicação de unidades ambulatoriais capacitadas para o acolhimento; formação de banco de dados fidedigno acerca do perfil da população atendida no Processo Transexualizador; atendimento integral, considerando procedimentos cirúrgicos que não se restrinjam à cirurgia de transgenitalização; garantindo a implantação de próteses de silicone mamária e penianas em pacientes que assim desejarem, como também de bombas clitorianas (importantes para a realização de metoidioplastia que consiste na soltura do clitóris já aumentado pela testosterona, transformando-o num pênis)) e a retirada da barba com laser; fim de tempo padrão de dois anos para desenvolvimento de parecer, da obrigatoriedade de terapia (exceto quando solicitada essa ajuda profissional pelos/as usuários/as); redução da idade mínima para realização das cirurgias de 21 anos para 18 anos; criação de um programa de serviço de banco de sêmen e óvulos para trans que quiserem se tornar pais/mães biológic@s depois da cirurgia, através de uma inseminação assistida, como já existe para a vasectomia ou nos tratamentos médicos que causem infertilização; legislação específica que proteja a pessoa transexual de discriminação por identidade de gênero em qualquer ambiente (importante: a criminalização da transfobia e da homofobia, vêm juntos no PLC 122/2006, projeto de lei ainda não aprovado); permissão da retificação de prenome e gênero no registro civil (e demais documentos subsequentes) de forma automática, para quem já viva no gênero identificado, sem obrigatoriedade de cirurgias ou laudos psiquiátricos (importante: um projeto de lei de identidade de gênero foi protocolado esta semana no Congresso do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), baseado  nas leis argentinas); ampliação do mercado de trabalho para trans e implantação de cursos de formação e capacitação para profissionais que lidam dentro desta área.

Você é pai. Conte um pouco esta experiência. Adoção de criança por trans tem mais dificuldades do que por um heterossexual?

A minha adoção foi aceitar a força da criação e transcender o fato da minha mulher ter engravidado de outro homem à minha revelia. Concordamos e aceitei a paternidade com uma exigência, que o pai biológico não ficasse sabendo da existência da criança. Adoção para homossexuais é complicada, e para trans é duplamente porque, primeiro, é preciso que trans troquem o nome e o gênero em seus documentos, o que demanda outro processo e que, pelas leis brasileiras, obriga-se a realização da cirurgia como condição preliminar. A adoção também está muito atrelada à questão da conjugalidade na nossa sociedade, o que confunde mais ainda, quando se trata de um casal trans. Quem é o pai, quem é a mãe?

O desafio da paternidade é a quarta parte do meu livro “Viagem Solitária”. Criar um menino de uma forma a não se tornar um ser naquele estereótipo machista, já implica em colocá-lo hierarquicamente em uma posição inferior na nossa sociedade. Ele já passou por situações homofóbicas, por não gostar de futebol ou por usar camisa cor de rosa. Permiti a ele o espaço emocional, que é considerado um privilégio feminino. Dei boneca de borracha para ele dar banho e vestir, desenvolvendo a capacidade de cuidar e ampliar a afetividade, tão importante num futuro pai. Recusei os “Kens” e robôs. Que criança pode ser pai de um boneco barbado ou um monstro metálico? Nunca exerci a força física, quer fosse na palmada ou no grito, para ensinar. Recusei-me a dar armas de brinquedo. Tentei fazer dele um homem que preze a paz, o meio ambiente e a respeitar a diversidade que existe por aí. Ele hoje está com 25 anos, apaixonado, casado e feliz.

Existe uma grande dificuldade de entender que identidade de gênero não é orientação sexual, por isto é possível ter trans homossexuais, bissexuais e heterossexuais, mas no senso comum a identidade de gênero continua sendo confundida com orientação sexual e não conseguindo ter um debate mais autônomo. Você arriscaria uma opinião porque isto ocorre?

Basta ser feminino para já ser visto como uma ameaça concreta ao poder falocêntrico. Não importa se é gay, travesti, transexual, transgênero, queer ou qualquer outro rótulo. Nas próprias faculdades de Ciências Humanas, ainda está para se criar no currículo obrigatório, a cadeira de Gênero e Sexualidade. A família, a escola, a mídia, as instituições são atravessadas por um bio-poder que, em nome da ordem, não fazem mais do que fortalecer este próprio poder heteronormativo. Não há interesse por parte da sociedade neste tipo de esclarecimento. A quem interessaria? Interessaria, talvez, a poucos acadêmicos e aos próprios “diversos” que sofrem as generofobias.

Se as trans femininas hoje têm hormônios, próteses e a cirurgia de mudança de sexo, em que passo está o arsenal para ajudar um trans homem (a cirurgia de redesignação sexual é algo muito recente e em estudo para os trans masculinos)?

O SUS (Sistema Único de Saúde) não oferece nenhuma prótese para trans. A neofaloplastia (construção de falo) é considerada ainda uma cirurgia experimental, mas só para os transhomens. A técnica foi mais desenvolvida a partir da Segunda Guerra Mundial, mas continua em pesquisas. Não há um protocolo específico para a metoidioplastia (consiste na soltura do clitóris já aumentado pela testosterona, transformando-o num pênis) e neofaloplastia. Não há protocolo específico para mastectomia (retirada das mamas)  nem para a pan-histerectomia (retirada total do útero) em transhomens. Além disso, deveria se mudar o nome de mastectomia para mamoplastia masculinizadora, já que é considerado um procedimento estético e não uma ablação como no caso de câncer mamário (entre outros aspectos técnicos, não se coloca o mamilo).

Lea T, na comentada entrevista recente ao Fantástico, disse que não se sente 100% mulher mesmo depois da cirurgia de redesignação sexual e você, se sente 100% homem? Se sim ou não, por quê?

Será que a diferença sexual é puramente biológica, física? É preciso pensar no status, nos efeitos do “sexo”. O caráter que o “sexo” assume não pode ser pensado fora das relações sociais, fora de marcações discursivas, que materializam esse “sexo”. O que é ser homem ou mulher? Seria o corpo o parâmetro de avaliação? Ou o gênero, esta outra variável sócio-histórica. O corpo sexuado só toma sentido depois do discurso, que o define e ao mesmo tempo, o materializa através de práticas regulatórias repetitivas, criando as subjetividades. Essa materialização é imposta e é também, através dela, que a “pessoa” se torna viável. Sem linguagem não há significação para nomear ou construir objeto algum. A nossa cultura impõe uma definição linear e coerente entre corpo, gênero, desejo e práticas sexuais hegemônicas, centradas em condutas heterossexuais compulsórias. Esse é o top. O resto é inferiorizado e @s trans são forçados à invisibilidade, porque denunciam que há outras sexualidades, além do binarismo macho e fêmea. O discurso da Lea demonstra esta resistência. Todo mundo nasce nu, o resto é montagem, drag ou performance, o mesmo valendo para os heteros. Cirurgia não muda gênero de ninguém, só faz a readequação do corpo para facilitar a articulação social. Poderá uma transmulher mostrar os peitos na praia, tendo um pênis no biquíni? Pode um transhomem ir de sunga sem pênis, mostrar os peitos, antes de uma mamoplastia masculinizadora? Serão presos, em prisões que não respeitarão o seu gênero. Infelizmente, a sociedade ainda vê e se baseia na afirmação fatídica de Freud: “Anatomia é destino”. Tradicionalmente, não há direito à singularidade de cada um, ser e viver como se sente. Cada vez mais, modernamente, se faz necessário discutir a questão das sexualidades disparatadas, periféricas, dos gêneros múltiplos e de suas desconstruções críticas a fim de evoluirmos para um mundo melhor e mais justo.

O escritor e psicólogo João W. Nery (Reprodução/Facebook)

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