Em época que não existe amor em SP e a cidade vive uma onda de violência, a peça “Desamor”, de Walcyr Carrasco, com Dionisio Neto, em cartaz todas as sextas-feiras na boate gay Blue Space, na capital paulista, em curta temporada, parece fazer um sentido maior ainda para tempos de intolerância, falta de gentileza e egocentrismo.
O trabalho, o segundo da parceira entre Neto e Carrasco, coloca novamente em xeque a questão da incompreensão do outro como um dado absoluto e impossível de ser transposto. Mas diferente de como foi em “Seios”, a primeira peça da dupla -que um homem que resolve mudar de sexo é questionado por sua esposa que não entende seu ato -, em “Desamor” é a plateia que desentende e renega o personagem central, um taxista homofóbico, misógino e ex-michê. O ato de não amor do protagonista é compartilhado com o público que o assiste, em uma relação espelhada, assim como sua mudança no decorrer da dramaturgia também é vivenciada em conjunto: texto e audiência.
Em um quase monólogo, Dionisio se apresenta inteiro na proposta de levar o sentimento de desamor e o desprezo (este sim o contrário do amor e não o ódio) para o público que o assiste. Em um texto curto, com momentos humorados, mas cheio de densidades e colorações, ele nos guia de um sentimento a outro, da intolerância a possibilidade fraternal. E no fim podemos até pensar que existe desamor em SP, mas também há amor.
O Blogay entrevistou Dionisio Neto sobre a peça.
Blogay – Como surgiu o texto para você? O que ele traz de novidades?
Dionisio Neto – Há mais ou menos dois anos, na época em que eu estava em cartaz com “Seios” (2010), de autoria de Walcyr Carrasco, ele me telefonou e disse que estava me mandando um texto que tinha escrito para mim, que sentia falta de uma peça que conversasse com aquela. Então chegou aqui em casa, no meu email, este texto, que não tinha nem nome, e me tocou profundamente, tanto pela forma literária, quanto pelo conteúdo. Chorei, chorei, chorei! Eu tinha acabado de ler “A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro” do Rubem Fonseca, e fiquei com uma vontade louca de montar no teatro porque era muito bom de ler em voz alta aquele conto… E o texto do Walcyr conversava com a musicalidade do texto do Rubem… Fiquei instigadíssimo a montar, liguei imediatamente para ele, emocionado pela riqueza do texto, agradecendo-o. E ele me agradeceu por tê-lo transformado em um autor melhor. Ele pediu para que eu batizasse o texto, e assim o fiz, mais honrosamente ainda… O texto é inspirado em um fato real, que aconteceu com ele, e depois ficcionado. A novidade é juntar homossexualidade, homofobia, religião, poesia coloquial seca, escatologia, misoginia e resultar em humor. E ser popular! Só mesmo um grande autor consegue isso. Walcyr se superou com “Desamor”, ele vai além! E [o diretor de teatro] Antunes Filho estava certo quando me disse que novos textos serão escritos para novos atores. Estou amando o posto de Muso!
Em quem ou no que você se inspirou pra fazer um personagem com tanto desamor? Como você compôs o personagem?
Eu me inspirei no [Marcelo] Dourado do BBB, no [ator] Milhem Cortaz, que é meu amigo desde “Carandiru”, em um homem que vi em um boteco aqui na Rua Cardoso de Almeida, perto da minha casa, e em Marlon Brando, obviamente, como em tudo o que eu faço. Eu compus o personagem aos poucos, por camadas, com muita fé, determinação e prática do método Lee Strasberg, que minha diretora Lucia Segall, que estudou por seis anos no Lee Strasberg Institute, mestra, portanto, do método, me ensina desde os tempos do CPT (Centro de Pesquisas Teatrais do Sesc, dirigido por Antunes Filho). O taxista homofóbico e michê é completamente diferente de mim. Eu não represento, eu vivo.
Como se mistura as citações eruditas e populares no texto e na encenação?
A parte erudita fica a cargo do violino de Bach, somente. Como todo clássico que se preze é extremamente popular. Misturamos naturalmente com o realismo proposto pelo texto, tanto que decidimos estrear em uma locação, a Blue Space, que é uma boate gay, talvez por influência do teatro que fazíamos nos anos 90 (meu primeiro texto “Perpétua” (1995) foi inicialmente encenado na pista de dança do extinto Columbia da esquina da Rua Augusta com Estados Unidos). “Desamor” é um espetáculo extremamente pop! Amor Humor.
Por que a opção de fazer em uma boate gay?
No começo dos ensaios abertos, nós chamamos curadores de festivais e teatros, para apresentações fechadas, que talvez tenham ressaltado o lado dark do texto. Misturar religião com sexo é um tabu que vem sendo quebrado ao longo da História da Arte. Por ser um texto popular em sua essência, ele precisa de um público mínimo para que a comédia aflore, e só tivemos isso na pré-estreia das Satyrianas, para 60 pessoas. O palco italiano, como em “Perpétua”, fez a comédia explodir! Cheguei a ouvir de uma curadora que “o brasileiro tem problemas com a palavra cu”. Desde a Idade Média, o cu vira comédia no teatro. Enfim, então, pela rejeição ao espetáculo destas pessoas, eu tive um insight: vamos fazer a peça em uma casa gay! É fazer teatro de uma forma mais ampla, com um questionamento social efetivo! Sinto-me um cidadão melhor fazendo isso. Depois, certamente, com o interesse que o espetáculo está despertando, tenho certeza que iremos para teatros mais populares. Meu desejo é quebrar mesmo os tabus e transformá-los em totem, para citar o mestre José Celso Martinez Corrêa [diretor de teatro]. Aliás, José Celso disse-me em um voo que fizemos juntos ao Rio de Janeiro que hoje o tabu nâo é mais o sexo, hoje o tabu é o amor!
O que é desamor tanto para você como na peça?
Eu escolhi a música do Criolo “Não Existe Amor em SP”, que caiu feito uma luva para o espetáculo, para a solidão do meu adorável taxista. Para muito além das questões sexuais presentes e poeticamente presentes no espetáculo, o tema central da peça é a transformação de um ser humano, que é tema caro ao Walcyr. Desamor para mim é a falta de fé, de espiritualidade, de compaixão, sobretudo, são as pessoas de coração seco, de alma bem pequena, para quem pedimos piedade, Senhor, piedade! Na peça, desamor é isso também.
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