Com a potência iluminada de Michelangelo, no Renascimento, os artistas que o sucederam por muito tempo quiseram pintar à maneira do grande escultor e pintor toscano. Foi o que os críticos deram o nome de maneirismo, já da forma pejorativa que usamos o termo até hoje. Mas um outro Michelangelo, Michelangelo Merisi da Caravaggio, de certa forma resolveria este impasse.
A Roma do final do século 16 e começo do 17 era o centro do pensamento artístico da Europa. Era lá que estava dois personagens que dariam fim ao maneirismo, de certa forma. Annibale Carracci e Caravaggio.
Carracci, poderíamos dizer, sendo banal, mas deixando claro para as novas gerações, um pintor retrô. Ele, de vez olhar para Michelangelo como todos faziam, resolveu mirar em Rafael, outro grande da Renascença.
“Annibal Carracci […] ficou fascinado pelas obras de Rafael, que admirou imensamente. Desejava reconquistar algo de sua simplicidade e beleza, em vez de as contradizer abertamente como faziam os maneiristas”, escreve E.M. Gombrich em seu clássico “A História da Arte”. E prossegue o colocando como opositor estético de Caravaggio. ”Ter aversão a retratar a fealdade [no caso de Carracci] parecia a Caravaggio uma fraqueza desprezível. O que ele queria era a verdade. A verdade tal como podia vê-la. Não lhe agradavam os modelos clássicos nem tinha o menor respeito pela ´beleza ideal´. Queria desvencilhar-se de todas as convenções e pensar a arte desde o começo”.
Este é o acontecimento Caravaggio. O artista que torna a luz um sujeito de sua pintura com o jogo de chiaroescuro (claro-escuro) que iria influenciar grandes gênios como Velázquez, Rembrandt e muito do que ficaria conhecido como o melhor do Barroco. Boêmio, traz as prostitutas, os marinheiros, os mendigos para posarem como modelo de suas obras. Digamos que foi um tataravô de Roberto Rosselini e todo o neo-realismo italiano que também buscava no cinema a verdade e a ética através das imagens.
“A dolorosa lição humana de Caravaggio ensinou a procurar valores mais íntimos e autênticos, a buscar a veia profunda do sentimento. De um sentimento que não parte de categorias morais abstratas, nem de contrates conceituais, mas que é ele próprio, em sua determinação e expressão imediatas, uma realidade moral”, explica Giulio Carlo Argan no essencial “Clássico Anticlássico”.
O acontecimento Caravaggio chega a São Paulo nesta quarta-feira, 1º, no Masp (Museu de Arte de São Paulo). São apenas sete obras reconhecidas como sendo do pintor, mas cada uma com a potência estética que precisará juntar muitas exposições na cidade para alcançar o seu valor. E nos tempos que vivemos uma outra espécie de maneirismo, com uma multidão de artistas criando à maneira da arte conceitual dos anos 1960, pode ser interessante ficar de frente a uma obra que soube sair deste impasse.
A polêmica sobre a homossexualidade de Caravaggio
Muito discutida até hoje é a orientação sexual do artista. Para muitos críticos, ao pintar jovens com tamanha carga erótica, o artista sinalizava claramente que era gay. Já para outros foi bissexual, esta tese foi a utilizada pelo cineasta Derek Jarman para seu filme “Caravaggio” de 1986.
A biografia do artista, “Uma Vida Sagrada e Profana”, do crítico de arte inglês Andrew Graham-Dixon, vai na contramão destas teses. “A meu ver Caravaggio era um homem omnissexual [todo sexual], não bissexual. Tudo nele era pura força primária. Estou empenhado em destruir o mito que o tem rotulado através dos séculos como um artista gay”.
De qualquer forma: gay, bissexual ou omnisexual, pouco importa, sua orientação sexual não constitui em fator essencial para a sua grandeza como pintor.
O que é certo é que a obra de Caravaggio é até hoje um ícone da cultura gay, mas além disso, é um dos orgulhos da humanidade.
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